terça-feira, 11 de agosto de 2009














Uma página em branco e do avesso
Jorge Amaral



Uma página em branco, do avesso, de baixo para cima, de trás para frente, indiferente. Começo do início e fim terminal. O esboço em carvão de um corpo de mulher, deitada em meio a lençóis alvos, escondida na brancura do papel, fugindo em linhas negras, esfumaçadas e perigosas, esboçada. Vestígios de um sonho dobrado que a corta ao meio sem piedade. Rindo à toa, o sonho afiado se perde nos descaminhos da imagem refletida pela indubitável transparência. O sonho é uma navalha a decapitar o real. Uma vez de um lado não se pode escolher o outro, quando no outro, o outro, será apenas (des)memória. A cor amarela é a cor do passado, registra o que já não é. A mulher, outra em outra, e o papel, suporte desleal, ainda estão ali, tão unidos e tão (des)iguais. O papel contém duas verdades em duas mentiras, ou vice-versa. O destino é sempre um jogo de sorte, talvez, de azar. A brancura do papel novo encerra em si o desespero futuro: a amarelidão do papel velho, guardado, esquecido. O novo é que está no velho e a recíproca é verdadeira. O desenhista já nem desenha, sequer existe. Só, a mulher não envelheceu. Dorian Gray a reclamar a juventude em espasmos de vida imitando a arte. A mulher é a obra de arte; o papel, o suporte; o artista, o criador. Óbvio, assim parece; erudição, se refletido.Pense no espasmo, no criador.Mistério a penetrar todas as vidas, todas. Dos três, apenas o artista não morreu, perpetuado em sua mulher no papel amarelado, abandonada no fundo de um jacarandá a desdenhar, inconscientemente, do interesse alheio. Eu, jamais envelhecerei! Será que ela pensa? Um depósito empoeirado e um tesouro assinado por mãos artífices, criadoras da mais bela das obras. À noite, quem sabe, ela ou dance ou se debruce na janela a espiar o mundo lá fora. Romance! O papel e sua ‘double face’: vida e morte. A mulher no verso, ou no anverso?, gerada em fluxos de pensamentos delicados, espontâneos, sábios, filosóficos e criativos, guiando mãos ultra-sensíveis. Uma valsa vienense e um sonho partido ao meio como o centro dos corpos pelos dois gumes da vida. O fio da navalha e a dor do dedo cortado na borda do papel. De um lado, a marca, do outro, nada. Transparência afetiva que a todos revela: lembrança. À meia-noite, desfaz-se o encanto e à fantasia a realidade.


















Cristianne - Tiza

NÃO MAIS

Já não mais me importa:
Se do caos surgiu o início
E do barro nasceu o mito,
Se o sol explode em cores
E a lua cheia é puro feitiço.

Já não mais me importa:
Se a ostra a pérola aborta
E o mar de ressaca é bravio,
Se a flor sem recato se abre,
Alimentando desejos lascivos.

Já não mais me importa:
Se da boca a dor escorre
E da garganta cala-se gemidos,
Se a esperança ainda existe
Dependurada a beira do abismo.

Já não mais me importa:
Se os meus olhos eram sedentos
E os seus, são de mel cristalino,
Se do passado restam silêncios
E do futuro sobram vazios.

Já não mais me importa:
Se inventamos uma história
E dela não há nem vestígio,
Se ao corpo que agora me abraça,
Entrego-me ao sacrifício.

Cursistas - estas são poesias que dedico a vocês enquanto aguardam a 2a. etapa do Gestar II















Brenno Kenji

METONÍMIA

Tentei gritar, não consegui
Minha voz, perdi
tantas eram as vozes que gritavam
dentro de mim.

Defronte a um espelho, meu rosto
procurei na massa disforme da minha face
E foi assim sério, com tal desgosto
que descobri, então, o meu disfarce

Não tinha um rosto, mas tantos rostos!
Embaralhados, tal como cacos
de vidro que, em mil pedaços,
ora sorriam, ora choravam.

Dentro de mim, todas as vozes
gritavam em coro. Oh, tantos coros!
E tantos rostos, quando choravam
eu bem sabia que me matavam!

Sim, eu morria, mas era um sonho!
Sim, eu morria, e o meu sonho
que, em pedaços, se contorcia,
com tantas vozes e tantos rostos,
também morria!

Mas era um sonho, somente um sonho!
Um sonho triste, tão moribundo
Tudo morria! Mas em tal sonho
nem nome eu tinha:
eu era o Mundo
que, então, morria...

(04/11/99)
Quando o verde dos teus olhos
José Geraldo Neres



A estiagem prolongou-se levando o brinquedo preferido. O Mandacaru alimenta e fere os olhos verdes da inocente infância. Lágrimas secas rolam de semblantes amarelos. A esperança é uma nuvem d’água, mas essa migrou para um povoado distante.

O alazão voador está aprisionado no solo ressequido, seu olhar pede um pouco de carinho - não consigo mais sonhar.

Meus amigos brincam de esconde-esconde, uns na jardineira engolidora de pais e, enquanto aos outros, a fome fechou os olhos.

Zezinho e Antônio são companheiros de caminhada para a escola – e esta é nossa única sombra de um futuro melhor.

Na volta da aula uma momentânea alegria me acalma. Perco-me propositadamente de meus colegas e sigo Ana: flor que nunca vi, a estranha e mais bela nestes sertões. Seu perfume é só meu. Para minha sorte, eles a ignoram.

Nossa caminhada é prazerosa, embora o tempo imponha seu curso impiedosamente: sol, mugido de gado extinto.

Ana me carrega e seu sorriso brilha como uma manhã nunca vista. Promete desvendar-me seu segredo, assim que chegarmos em sua morada. O caminho parece diferente, as aventuras ficaram para trás.

Debaixo de uma grande árvore, com galhos de folhas mortas, ela revela de forma enigmática:

– Voltarás a sonhar. O teu caminho será verde. O céu te dará asas. Amanhã não voltarei.

Naquele dia de setembro, como em muitos outros dias do ano, Zezinho e Antônio foram à minha casa. A notícia dada por minha mãe não os assustou, fazia parte do cotidiano da região:

– Ele só esperou a primavera, parece estar sonhando.

O silêncio apoderou-se de meus amigos e assim se retiraram de casa.

De volta à peregrinação, Antônio acrescentou:

– Aquela flor que ele segurava, eu nunca vi aqui no sertão.